domingo, 3 de fevereiro de 2008

Mais um rosto esquecido

"Mãos de pai; ele tem mãos de pai", pensou. Sempre se pegava assim, perdida em pensamentos, vagando pelo instante anterior. Agora tentava explicar, à sua parte consciente, a condição de João.
Um homem de uns trinta e cinco anos, olhar amoroso e contido, guardado por um brilho quase azul, de tão verde. Por que estava ali sozinho?
Todas as manhãs, João, o sindico do prédio, levava para ela um pouco de café e, tomado por um bom humor estouvado, inventava assuntos. Era uma criança. Uma criança com mãos grandes, calejadas por trabalhar incessantemente. Mãos de pai. Por fim, sorria de forma desajeitada e a cumprimentava. Tentava inovar nos cumprimentos, e tal tarefa parecia exigir esforço.
O sabor do café preparado por João era único. O equilíbrio entre o pó e o açúcar... o aroma que exalava. Mesmo os mais cuidadosos afirmavam, sem hesitar, que tomando aquele café, poderia-se chegar a qualquer ponto do inconsciente; A qualquer lembrança de infância ou ocorrência de uma semana já passada.
Onde estaria o problema? Nas "mãos de pai", dignas da preparação de um café quase mágico? Certamente não.
Por mais que pensasse a respeito, explicações lógicas pareciam inviáveis.


***


Um mês depois, mudou-se para a casa do pai. O raciocínio tão oposto ao da mãe a desagradava e tornava a convivência insuportável. Em alguns momentos, observando a própria mente, acabava se distraindo e cantava, sem mais nem porque. O desabafo saía com versos alheios, canções decoradas.
O som alto, velho conhecido dos vizinhos, hora ou outra tocava:


"Ensaiou o que diria se um dia fosse "artista
homenageada no Faustão"
Enxugaria as lágrimas, abraçaria amigos
e a mãe teria o seu perdão"


Adorava a chuva. Conhecia bem as duas estações pouco elegantes de sua cidade e quando se dava conta do período chuvoso, tratava de providenciar uma caminhada reflexiva. Ao som da água caindo, lavava a própria alma através de um sofrimento intenso. Nem ela sabia por que sofria tanto, talvez todos os motivos fossem inventados.
Arriscou fazer aquilo outra vez. Caminhou pela chuva o dia todo e se deparou com uma cena por ela desconhecida: um corpo estirado ao chão próximo a um carro. O carro era azul e amarelo e ela não se lembrava de ter visto antes um carro nesses tons. Tudo mexeu com seus sentimentos, mas não sabia ao certo de que forma.
Agora, sem o café mágico de João e seu olhar amoroso, ficava parada no tempo, sem ter no que pensar. O vazio absoluto acompanhava cada passo. Lembrou-se por um segundo que não cultivava amigos e o fazia por se considerar inadeqüada para todo tipo de situação.


***


Com o decorrer de sua caminhada, percebeu que ninguém a notava. Se achava mesmo desinteressante, mas sentia falta de olhares. A carência a consumia e acentuava o vazio que, estranhamente, a movia.
Naquele dia, viu a lua e as estrelas. Viu o futuro e o passado. Toda história já consumada e todos os destinos traçados.
Voltou à casa de seu pai.
Enquanto enxergava sua natureza morta, olhar mórbido e indiferente à televisão, percebeu a notícia anunciada.
O acidente do dia anterior. Era sua foto no jornal. Quando teve consciência disso, expressou um discreto sorriso e desapareceu no ar.
Um dia depois todas as recordações que tinham dela se apagaram. Aparentemente ela nunca havia existido. Talvez fosse mero fruto imaginário.

6 comentários:

Anônimo disse...

Carambassssssssss perfeito seu Conto lidião!!!!
Nunca havia lido algo tão massa!!!
tive de copia-lo e quarda-lo na minha pasta de raridades!!!
Nohhhhhhhhhhhh!!!!!
vc precisa escrever mais!!!!


Velho Texano.

Sabrina disse...

É assustadora a idéia d passar pela vida sem ser notado...

Belo conto, Lídia.

Anônimo disse...

eu achei meu conto uma bosta


hasuashusahua

Sabrina disse...

meio drástica no comentário, c num acha naum?

Anônimo disse...

talvez sim.


escrevi o q me veio à cabeça,
tanto no conto quanto no comentário...
então,

tanto faz.

Igor A. disse...

'tão distante, parada no mesmo lugar...'

^^




no_more_words

"Aqui não há Lei. Não há nada. Só há nós. Nós somos a Lei."